Maternidade e arte: o olhar sensível da artista Eva Couteiro

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mulher branca e filha pequena aparecem de costas, sentadas no chão, enquanto trabalham com elementos criativos. A mulher veste blusa branca com flores amarelas e uma jardineira jeans, e a criança pequena camiseta rosa e calça cinza

Eva Couteiro, artista contemporânea, compartilha suas reflexões sobre maternidade e arte em um relato inspirador, sensível e íntimo.

 

Ser mãe é uma das experiências mais intensas e transformadoras que uma mulher pode viver. E para quem cria, ela se torna também uma fonte inesgotável de inspiração. Entre pausas, descobertas e recomeços, maternidade e processo criativo se cruzam de formas únicas, revelando novas camadas de sensibilidade.

Para a artista Eva Couteiro, a chegada da filha não apenas redesenhou a sua rotina, mas também a sua forma de olhar o mundo e criar. Em suas palavras, a maternidade não foi um freio — foi um novo começo. “Em primeiro lugar, ser mãe é ter todas as certezas rasgadas. Nada é previsível. O tempo ganha outra dimensão e a forma de existir também”, ela conta.

Nesta entrevista, Eva compartilha a experiência de conciliar maternidade e arte, mostrando que ambos os conceitos se misturam em um mesmo movimento de criação, cuidado e transformação.

Entre maternidade e arte: bastidores da criação de Eva Couteiro

A maternidade costuma transformar não só a rotina, mas também o olhar criativo. Como esse encontro entre mãe e arte mudou sua forma de criar?

Em primeiro lugar, ser mãe é ter todas as certezas rasgadas — é um reset quase total da pessoa e da artista que julgamos ser. Para mim, foi assim…

Ver-me com um bebê nos braços foi tão encantador e deslumbrante quanto desafiador. Estava totalmente focada no ser pequenino que tinha aos meus cuidados, e a vida, os planos e as vontades que tinha na gravidez ficaram em stand by por tempo indefinido.

Tudo muda. Os ideais se aguçaram, a vontade de mudar o mundo — pelo menos as partes que consigo tocar com as pontas dos dedos —, a vontade de ouvir, ler e conhecer mais mulheres e mães, de me reconhecer enquanto mulher-mãe e mãe-artista, a visão política e, claro, a visão artística mudaram. 

Nos primeiros anos, o impacto da maternidade foi como a queda de um meteorito em cima de mim e, embora as ideias não tenham desaparecido, minha força anímica para colocá-las em prática era muito pouca. Escrevi, desenhei e anotei ideias — foi, sobretudo, isso.

Minha prática cerâmica parou por um período breve, mas retomei assim que nos mudamos do Porto para Ovar. Devagar, sempre devagar, até porque fui mãe em tempo integral durante três anos e meio. Com apoio limitado, só após a filha entrar na pré-escola pude retomar, com mais foco e constância, minha dedicação à prática artística.

A parte do meu processo de trabalho que não se alterou e que se mantém é: quanto mais faço, mais ideias surgem e mais quero fazer. Mas é inegável que a desaceleração que a maternidade trouxe, me abriu os olhos para detalhes que antes me passavam despercebidos. Há poesia em quase tudo, se soubermos olhar com atenção — a maternidade aguçou meu olhar.

 

mulher de blusa azul e vestindo uma cabeça de galinha aparece segurando duas esculturas
Na exposição “vou ao fim do início” vestindo a pele de Mãe-galinha com os “choradores que regam a coisa certa” nas mãos

Quais temas ou emoções ligados à maternidade e arte aparecem com mais frequência em suas obras?

Depois de ser mãe, já não dá para ver o mundo sem o ser e, atualmente, minha prática artística foca-se em questionamentos que me surgem desde então.

Vieram medos, culpa e o abandono de quem fui, de quem foi minha mãe, da filha que sou. Inclusive, da mãe que idealizei ser. Surgiram algumas peças em um tom mais pesado e deprimido que não me interessava tanto, porque não me via nele. 

E, como sempre me interessaram muito os trocadilhos, os ditados e as lengalengas, e porque faz sentido provocar e questionar sem necessariamente ferir, gosto de poder utilizar uma linguagem mais ou menos bruta e escancarada, com humor, mas sempre com alguma delicadeza e poesia — foi assim que surgiram as mães-bicho.

Começaram por ser mães-galinhas, a partir da expressão “mãe-galinha”, tantas vezes usada para me descrever no meu estilo de maternar. Peguei esse conceito em tom de provocação e fiz essas representações híbridas de mulheres desnudas, que ora estão grávidas, ora são mães que amamentam e acolhem nos braços/asas seus filhos, com atributos de galinha. 

E continuei, passando pelas mães-lobas, mães-corujas e mães-ursas, até chegar às mães-diabo — aqui já com o intuito de abordar a ideia da mãe como um ser humano com falhas, que erra, que deseja e que é mais do que a santa que querem impor que seja.

De que forma ser mãe influencia suas escolhas de cores, formas e materiais?

Ser mãe me deu novas lentes. Observar de perto um ser humano descobrindo o mundo pela primeira vez trouxe nova perspectiva. Pensei muitas vezes que as coisas que levamos anos para desconstruir quando buscamos nossa linguagem artística, as crianças já trazem nelas — a pureza com que veem e representam o que veem, o olhar verdadeiramente curioso… Para mim, isso não é apenas comovente, mas extremamente inspirador.

Aprendi e aprendo muito ao observar minha filha. Desenhamos muito juntas, e isso influencia diretamente meu trabalho e a forma como transponho formas e ideias para minhas peças. 

Começando pelas constantes chamadas de atenção para detalhes que já me interessavam, mas que agora, pela desaceleração que a maternidade impõe, tornaram-se mais presentes e impossíveis de ignorar — os recortes que a copa das árvores desenha no céu, um bando de pássaros levantando voo, um pássaro camuflado entre as folhas secas do outono, uma luz bonita ao fim do dia, uma flor nascida na beira da calçada, os quilos de folhas secas, pedras e gravetos que ela traz nos bolsos e me dá para levar também… São coisas corriqueiras, mas são chamadas de atenção importantes.

Na escolha da cor de um objeto, as cores da natureza são um bom guia, porque são todas e me servem, ou sirvo-me delas conforme me sinto, conforme vou sendo. Vermelho é uma cor que adoro e associo à mãe que sou: é parto, é vida, é calor, é colo, é chama, é grito, é conforto e confronto, é mãe e arte. Rosa é outra cor que utilizo e adoro mais agora, com olhos de mãe: é filha do vermelho, é minha filha, é amor, é conforto, é carinho, é partilha, é a vida acontecendo. São duas cores que uso muito e que estão sempre presentes, mas todas as cores cumprem seu propósito.

Também é verdade — e há que dizer — que nem sempre uma peça termina exatamente como foi pensada, não só porque no processo as coisas mudam e evoluem, mas porque a imprevisibilidade ao longo da criação de uma peça é real, sobretudo na cerâmica, onde é preciso saber dançar com o tempo. A essa dança soma-se a imprevisibilidade de criar filhos — é inevitável haver interrupções aqui e ali.

mulher branca vestida com camiseta branca e listras vermelhas aparece de frente mexendo em escultura
mãe artista aparece dando vida a uma de suas artes

A maternidade trouxe novas inspirações ou abordagens para o seu trabalho artístico?

É inevitável ser influenciada pela chegada dos filhos, tanto pela logística e pelas mudanças que eles trazem, quanto porque nos abrem os olhos para temas que antes não pensávamos tão a fundo — ou sequer pensávamos. Antes de ser mãe, o cavalo era um animal sobre o qual eu não refletia muito e que, acredito, não teria representado se minha filha não tivesse tanto fascínio por ele, pedindo-me tantas e tantas vezes para desenhá-lo com ela e para ela.

Quando decidi, por exemplo, fazer mini-jarras, fiz elas por causa dos tais gravetos, flores secas e penas que minha filha recolhe nos nossos trajetos casa-escola e escola-casa e nos passeios. As mini-jarras são pequenos suportes criados para abrigar plantas e galhos — lembranças que quase todo filho traz dos passeios. Fiz porque sou mãe e, se não fosse, provavelmente não me lembraria de fazer.

Como a maternidade alterou sua rotina criativa e organização do tempo?

Nem sempre a rotina de um bebê ou de uma criança pequena é compatível com a criação de peças artísticas — são dois tipos muito diferentes de criar. Ambos exigem muita atenção, tempo e dedicação e, não havendo uma rede de apoio ampla, o desafio aumenta. Às vezes os planos não se concretizam, e sacrificam-se horas de sono em vez do tempo com a filha ou com o trabalho. Não é o cenário ideal, mas é o possível.

Felizmente, os filhos crescem, nós também e, com a prática, o trabalho flui com mais leveza. Assim, ajustes vão sendo feitos e começa a ser mais fácil não só gerir o tempo, como incluir a criança no ateliê. O que, na verdade, com mais ou menos dificuldade, sempre aconteceu. E aconteceu também porque o ateliê fica em casa, o que facilita essa logística.

Há momentos do dia ou situações com os filhos que inspiram diretamente suas obras e reforçam o vínculo entre maternidade e arte?

Aconteceu — e acontece muitas vezes — sair diretamente do quarto, depois de deitar a criança, responder a questionamentos existenciais dela, ler uma história, e ir para o ateliê. Da cama para o barro, do barro para o banho e do banho para a cama outra vez. Esse movimento influencia a criação, porque levo comigo ideias dessas conversas com ela.

Há uma peça minha de que gosto muito porque começou com minha filha. Eu pensava sobre a ideia da mãe como casa, abrigo, refúgio e meio de transporte — seja pela barriga, seja pelo colo —, e, nessa época, minha filha desenhou uma mãe-pássaro com filhotes na barriga, em pleno voo e com sementes no bico. Redesenhei e transpus para grés branco uma peça de parede: Nave-Mãe.

Em junho deste ano, no Dia das Crianças, inaugurei com amigos artistas a exposição “Vou ao Fim do Início”, que nasceu da necessidade que sentia de frequentar espaços expositivos acompanhada da minha bebê/criança. 

Isso me levou a contatá-los com o objetivo de pôr em prática a ideia de fazer coexistir arte e infância em um mesmo espaço expositivo, com peças que pudessem ser tocadas e vistas por todos os visitantes — dos mais pequenos aos adultos. E que depois foi repensada e desenvolvida por todos, culminando em uma residência artística e em uma exposição cujo título é uma frase dita pela minha filha.

 

 

escultura de uma mãe-coruja grávida segurando dois filhotes
Mãe-coruja grávida com dois filhotes

Como você equilibra a maternidade e arte na sua rotina? Isso impacta seu processo criativo?

Nem sempre há equilíbrio entre maternidade e arte, mas, no meu caso, as duas se complementam. Eu era artista quando me tornei mãe, e agora sou mãe, e toda a minha prática está intimamente ligada a esse fato. 

Não dá para desligar uma da outra, mas, por razões óbvias — e embora eu acredite que as crianças devam ser incluídas na sociedade —, a verdade é que elas são motores de desaceleração. Com elas vivemos o presente, vemos de perto e, assim sendo, faz sentido adiantar o máximo de tarefas relacionadas ao trabalho durante os períodos em que ela está na escola. 

Também é preciso aceitar que, se tiver de trabalhar com a criança por perto — muitas vezes ao meu lado —, vou trabalhar mais devagar, e que tudo isso faz parte do processo. Às vezes vou falhar, e é importante aprender a falhar melhor, mas, sobretudo, aprender a lidar com a frustração que às vezes me inunda e tentar outras formas: adaptar horários, alterar peças, repensar tudo.

De que forma a maternidade e arte influencia a conexão com o público e a transmissão de emoções em sua arte?

Repensar tudo me faz ter coisas a dizer, porque me dá perspectiva sobre temas que, do lugar de mãe, passaram a fazer sentido e que antes eu não percebia com a mesma amplitude. Tenho coisas a dizer — e quem acompanha meu trabalho se aproxima da minha realidade e da linguagem que uso para expressá-la.

Se antes quem acompanhava meu trabalho eram, sobretudo, amigos, conhecidos e ex-colegas de curso, agora juntam-se a esse grupo mães, pais e educadores — pessoas que vivem com crianças e se identificam com esse olhar materno sobre o mundo e com a revolução que é ser mãe.

Existem obras que podem ser consideradas diretamente inspiradas pela maternidade?

Eu diria que a ideia de revolução domina minha prática e, a partir dela, vou construindo e desconstruindo com base nessa noção de mutação, metamorfose e adaptação. Por isso, tudo o que faço está ligado à versão de mim que é mãe e que se somou à Eva que eu era. 

Voltando à exposição “Vou ao Fim do Início”, que surgiu do desejo de ver concretizada uma mostra realmente inclusiva, dos 0 aos 80, porque, quando se excluem os bebês e as crianças, excluem-se também seus pais — sobretudo suas mães. 

Foi movida pelas lentes que a maternidade me deu, que desafiei o grupo de artistas que depois pensaram e realizaram comigo o projeto expositivo — Joana BC e Inês Soares, que formam comigo o núcleo duro do coletivo informal que criamos e com quem minha noção de comunidade se reforçou. Além da Sara Carneiro, do Mário Antunes e do Luís Santos, que contribuíram com ideias e peças. A todos eles agradeço pelas aprendizagens ao longo do processo.

 

escultura de mãe-bicho segurando filhote em processo
Detalhe de uma mãe-bicho em processo

 

Que conselhos você daria a outras artistas mães para manter a criatividade enquanto cuidam da família?

Os processos criativos e as experiências de maternidade e arte variam tanto de uma pessoa para outra que é difícil dar um conselho realmente bom. Diria que é importante entender e aceitar que nem sempre vamos manter a criatividade e que, como antes da maternidade, ela terá oscilações — e é importante aceitá-las.

Numa perspectiva mais prática, diria para anotarem as ideias que surgirem, não se isolarem, buscarem uma comunidade, deixarem-se inspirar por outras pessoas, ouvirem música, lerem livros e tentarem encontrar pequenas brechas na rotina para dedicarem tempo à sua prática artística. 

Observação: esse conselho parte do pressuposto de que existe um(a) companheiro(a), uma rede de apoio e, portanto, algum tempo disponível. Mas acredito que é um caminho que se faz caminhando — e não há receitas.

Mãe e arte: criatividade guiada pelo amor e pelo olhar materno

Ser mãe transforma cada olhar, gesto e escolha. Para Eva, a maternidade e arte caminham lado a lado, alimentando sua sensibilidade e sua criação. Cada peça revela como a maternidade e processo criativo se entrelaçam, mostrando que ser mãe é, também, aprender a criar com presença e delicadeza.

No fim, mãe e arte se inspiram mutuamente: cada momento com os filhos se torna fonte de ideias e cada obra carrega um pouco desse olhar transformado pela experiência de ser mãe.

 

Quer conferir todas as dicas sobre as crianças e o uso da internet? Acesse aqui.

 

Artista cerâmica

Eva Couteiro

Artista que trabalha com cerâmica através de processos de modelação. Foi licenciada em Artes Plásticas – Escultura pela FBAUP (2016) .  Siga os perfis @evaccouteiro e @vitorina.eva

Logo do mybabycare, passarinho saindo do ninho.

Escrito pela equipe

My Baby Care

O Mybabycare é um portal, um espaço seguro para trocar experiências com pais, futuros pais e especialistas. Aqui, ninguém caminha sozinho.

Artigo escrito por

Lidiele Moura

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